sábado, novembro 03, 2007

Ônibus 174 / Tropa de Elite

Ontem à noite, sessão dupla com José Padilha. Primeiro o Ônibus 174 (2002), seguido do recente Tropa de Elite (2007).

No Ônibus 174 (de que gostei muito) vi novamente a Humanidade. Há uns tempos atrás tinha aqui falado da Humanidade e de como ela me parecia estar tão presente nas ruas e nas mentes do Rio de Janeiro. [curioso como também foi essa a primeira palavra/noção que expressei aqui em 2007...] Pois ontem ao ver o documentário de Padilha sobre o famoso sequestro do ônibus 174, sobre Sandro Barbosa do Nascimento e as suas reféns, eu vi novamente essa Humanidade de que tenho vindo a falar. A Humanidade que permite que Sandro chegue a ser abraçado, quase confortado, por algumas das reféns, que lhe chegam mesmo a dar uma medalha protectora; que faz com que elas joguem o jogo por ele proposto (um jogo, de tal ordem bizarro, em que até uma delas tem de fingir morta...); em que uma delas (pelo menos uma delas) sabe que hoje, passada a tormenta, até lhe perdoa o feito. Mas também a Humanidade que, ansiosa, esperou o momento do desfecho para poder linchar o Sandro mal houvesse oportunidade e, na falta dela, e como a Humanidade também está nos policiais, se mostrou em pleno no asfixiamento brutal (mortal) a que Sandro foi sujeito dentro do carro da polícia por agentes totalmente embrutecidos. É um documentário de imagens fortes mas sobretudo de ideias fortes. Padilha não se limitou a explorar as emoções mais básicas de uma história de terror urbano, indo, pelo contrário, e na melhor tradição do documentário, procurar as histórias por detrás da história. E deste modo temos acesso a fragmentos da vida passada e desconhecida de Sandro, desde os traumas de infância (e, sim, ver a mãe a ser esfaqueada por três tipos pode muito bem dar cabo de uma criança...) aos traumas de adolescência (se poucos minutos daquela prisão me enojaram, imagino o que não farão várias semanas...), passando pelo ponto alto que foi na vida dele o "Massacre da Candelária" (da qual foi vítima, ilesa, mas vítima...). Fio a fio, o novelo (ou a novela?) vai tomando forma até que se embrulha descontroladamente naquela tarde de Junho de 2000. Sandro não sabe o que fazer, as reféns não sabem o que fazer, a polícia não sabe o que fazer, as autoridades não sabem o que fazer. O caos instala-se, a lucidez de raciocínio turva-se (e porque não deixá-lo pirar-se dali, pura e simplesmente...?) e uma situação que pareceia banal (uma das miúdas chega a telefonar para o cursinho a avisar que vai chegar atrasada...) torna-se uma prova para a Humanidade. Prova que, a meu ver, acabou empatada. Humanidade 1 – Barbaridade 1. O desempate pode estar nas vossas mãos. Vejam Ônibus 174 assim que puderem!



Já o Tropa de Elite é diferente. Primeiro, é cinema, não é documentário. Segundo, centra-se no policial, não no marginal (este termo não meu, é da sociedade brasileira...). Terceiro, a Humanidade já não está tão presente, porque Tropa de Elite pretende lançar questões profundas e fomentar (ou será formatar?) o debate na sociedade brasileira (e tal dinâmica não diz respeito à Humanidade...). Tropa de Elite nasce em grande parte na sequência do livro Elite da Tropa de Luiz Eduardo Soares, antropólogo e durante um período Secretário Nacional de Segurança Pública. Ambos se centram no dia-a-dia dos elementos do BOPE (Batalhão de Operações Especiais), o batalhão da caveira, os homens de negro, os responsáveis pelo "caveirão". O lado incorruptível (será?) das forças de policiamento, mas o lado violento, violentíssimo, da acção policial. O filme mostra-nos como se preparam, e para que fins se preparam, estes soldados da cidade maravilhosa.
Soldados, porque é de uma guerra que se trata, dizem-nos. Este é o primeiro desafio social que o filme propõe. De dia para dia este termo – guerra – está cada vez mais presente no discurso em volta do tráfico e da violência. Mas não será isto um profundo erro? Olhando para o BOPE e para as suas acções e métodos, a resposta é evidente. Lamentavelmente, não o é para todos.
Outro desafio que o filme lança é o do papel das classes médias e altas cariocas neste cenário. A proposiçao é esta: por cada baseado que um "mauricinho" fuma (ou trafica na sua faculdade) há um garoto que morre na favela. Será assim? A mim parece-me que sim, que em locais como o Rio de Janeiro fumar (ou não) maconha, cheirar (ou não) coca, acarreta uma forte responsabilidade social. Por muito que me doa estar de acordo com a maioria dos membros do BOPE (que, como se vê no filme, têm um profundo desprezo pelos "playboys" e pelas suas práticas ilícitas) parece-me que um charro no Rio não é o mesmo que um charro em Lisboa.
Estes desafios, estes debates, são intensos e interessantíssimos. Basta pesquisar no YouTube filmes sobre a violência policial no Rio de Janeiro e assistir às batalhas de comentários que acompanham cada filme para se perceber que o tema é tudo menos pacífico. Se não é pacífico, será, então, a guerra...?

A cópia que eu vi parece-me que não é a final. A que eu vi foi comprada num camelô bem no centro do Rio de Janeiro, ainda o filme estava a ser montado (a gigantesca máquina de pirataria deste filme gerou outro vasto e interessante debate). Mas gostava ainda de ver a versão final. Gostava de saber se o agente Matias acaba ou não com o traficante e, caso o faça, de que maneira o faz. Parece-me importante sabê-lo. Assim como o vi, ontem, na cópia do camelô, não me agradou, mas, diga-se, neste assunto nada é lá muito agradável... Mas o filme, esse, é de ver. Bem filmado, uma boa fotografia e uma óptima preparação de actores (que vim a saber ser da autoria de Maria Fatima Toledo, que já trabalhara com os miúdos da Cidade de Deus e com os graúdos da Cidade Baixa). A ver, decididamente. E como dizia Mónica Marques no seu blog, «e você, está preparado para amar um capitão do BOPE?». [embora, pensando bem, me interrogue sobre o que quereria ela dizer com isto...]


E aqui deixo também a ida de José Padilha ao programa de Jô Soares.


2 comentários:

Anónimo disse...

Carlos, já desde a sua primeira incursão sobre o tema Humanidade que eu me senti algo provocado. Fiquei pensado em como comentar. Afinal, parece que vivo nesse lugar pleno de Humanidade. E, mais importante ainda, esse lugar e as pessoas que nele vivem, deveriam se regozijar por essa oportunidade em um mundo tão vazio de ...Humanidade.
Mas, até que ponto o que você diz não é tributário de um olhar que pretende ver os trópicos quentes e vivos. Plenos e sedutores.
Sei que não é disso que se trata. Conheço você e divido, tb com vocês (olá Susani)o horror com esse mundo shopping-consumo que não está presente apenas na sua parte rica. Além disso, continuo achando que podemos falar de uma classe(que se define cada vez mais pelo consumo -perdão Marx) que está espalhada por todos os lugares. Cascais, Ipanema, Paris etc. E que (re)produz no casal Ventoso ou na Rocinha .... Epa! Não seria melhor dizer que a Rocinha e o Casal Ventoso se apropriam e criam sobre o mundo consumus dos ricos.
Caramba !! Dessa forma eu acabo me aproximando da sua conversa sobre humanidade nos trópicos. E o que eu queria mesmo e reclamar dela.
Só mesmo uma noite no Cosmopolita ou na cozinha com muito café para discutirmos e encontrarmos muitas respostas.
Porém. Atenção que eu não terminei. Eu queria dar o meu pitaco sobre a sua programação cinematográfica - barra pesada -durante o feriado de todos os santos e finados.
Eu ainda não encontrei coragem de ver o filme sobre o "174". Curioso. Já vi uma porrada de filmes sobre o horror nazista mas o menino no ônibus eu arreguei e sempre que penso em pegar na locadora deixo prá lá. Será que tem alguma relação com a pergunta que o Chico acabou de fazer. Ele quer saber se está ouvindo tiros. E está!!
Mas já vi o Tropa de Elite. Não vou dizer que é um filme pouco interessante. Embora não possa deixar de lembrar que é um bocado americanizado para o meu gosto. Falo de ritmo, plano, esquema de entrada de audio etc. Mas não posso deixar de comentar sobre a sua semelhança com os filmes do Charles Bronson. Infelizmente a Tv brasileira dos anos 80 sempre sacava um edificante filme do Bronson. Tropa de Elite me fez lembrar de Bronsom com duas importantes diferenças: a) o capitão Nascimento não arrasta os pés na sua ação vingadora. b) Bronson não é o Estado. Nascimento o representa e, como Bronson, ele é o herói do filme.
Beijos em todos

anauel disse...

Companheiro Ribas,

Que bom que você respondeu e comentou! E ainda bem que você tem o discernimento para topar que não se trata de um olhar fascinado e voyeurista pelos trópicos. Nada disso. E também não digo, que fique claro, que o Rio tem mais Humanidade que Lisboa, que Caracas tem mais Humanidade que Paris. Não. A Humanidade está em todo lado, porra. É património geral. O que eu sinto é que ela é mais visível, mais palpável, mais emocionante, precisamente nos locais onde a barra está mais pesada! Isto porque a Humanidade é mais crua (não cruel) do que imaginamos, ela é bem mais simples. E não pede licença para se manifestar. E quando a barra está pesada e não dá mais para botar paninhos quentes, só resta ela mesmo. Basta vermos a "relação" entre Sandro e uma das suas reféns (aquela que o perdoa no final). Aquilo me emocionou.

Também me lembrei imediatamente da sua resistência ao "174" e só te digo, vê o filme, vais ter uma surpresa agradável. Eu tive-a. Não é nada manipulador das emoções, eu achei-o mesmo bem honesto. E compreendo que ter de explicar ao nosso própio filho que sim, que o som que ele ouve lá fora são tiros, pode fazer com que a gente se queira afastar desta "merda" toda. Mas não vai dar não. Os tiros estão lá e o filho da gente também... Coragem e aluga o "174", companheiro (e dá um abraço no negão, por mim...).

Quanto ao "Tropa de Elite" é isso que você diz. Mas no final é bem que aceitável. Quanto ao capitão Nascimento, para mim, e como você pode calcular, não é herói porra nenhuma. E tenho algumas dúvidas (a Susani não tem, diz-me; anda lendo algo sobre o Adriano Oliveira) que o capitão Nascimento seja o Estado. Ele representa o Estado, mas os BOPES da vida cada vez me parecem mais arbitrários e autónomos (tipo vigilantes) do que cumpridores da palavra do Estado. Quando um agente do BOPE sobe no morro e tortura um moleque (bandido ou não) ele está cumprindo ordens superiores, do Estado? Não sei. Se está, a Humanidade está mais ferrada do que eu imaginava...(mas não perdida; a luta continua)

Mas aceito o desafio para mais uma noitada no Cosmopolita!